SAUDADE

Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.

Clarice Lispector

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

MISTÉRIOS GOZOSOS

Estava eu revirando antigos emails e achei este texto que recebi como presente de aniversário em 2007, de um querido amigo que já não está mais entre nós...Joka...creio que ele não se importará por eu dividi-lo com vocês...

MISTÉRIOS GOZOSOS - Affonso Romano Sant’Anna

Uma coisa especial ocorre com a mulher depois que ama. Repare, estou dizendo, depois que ama. Não estou me referindo a ela enquanto está no ato do amor. Disto se pode falar também, e a literatura a partir do romantismo e depois o cinema, modernamente, já tentaram de várias formas simular na relação amorosa como a mulher suspira, se contorce, desliza as mãos e entreabre a boca do corpo e da alma.

Mas, quando digo "depois que ama", refiro-me ao estado de graça que a envolve após o gozo ou gozos, e que perdura horas e horas e às vezes dias. Fica macia que nem gata aos pés do dono. Mais que gata, uma pantera doce e íntima. Sua alma fica lisinha, sem qualquer ruga.

A vida não transcorre mais a contrapelo. Desliza. Ela tem vontade de conversar com as flores, com os pássaros, com o vento. Sobretudo, descobre outro ritmo em sua carne. É tempo do adágio, de calma e fruição.

Neste período, aliás, o tempo pára. Em estado de graça ela se desinteressa do calendário. O cotidiano já não a oprime. As tarefas da casa, pesadas em outras ocasiões, tornam-se leves, os compromissos mais enjoados podem ser acertados, as tragédias dos jornais já não lhe dizem tanto respeito. O trabalho do escritório torna-se leve, pode ser feito quase cantando. Algumas desenvolvem uma súbita necessidade de tecer, outras de aninhar. Querem bordar, costurar, arrumar coisas na casa, entram em clima de nidificação. É a hora de uma ociosidade amorosa. Outras querem presentear o amado e o mundo com pratos sutilíssimos e saborosos.

O fato é que a mulher nessa atmosfera sai do trivial, se angeliza e glorificada, pervaga pela casa.

O homem, animal desatento, às vezes não se dá conta. Em geral, nunca se dá conta. Ou dá-se conta nos primeiros minutos após o ato de amor, e depois se deixa levar pela trivialidade, deixando-a solitária em sua felicidade clandestina. Na verdade, ela sobrepaira ao tempo, está adejando em torno do amado, que deveria suspender tudo para sentir desenhar-se em torno de si esse balé de ternura. Deveria o homem avisar ao escritório: hoje não posso ir, estou assistindo à reverberação do amor naquela que amo.

E como isto se assemelha à floração rara de certas plantas. os amados deveriam interromper tudo: seus negócios e almoços e ficarem ali, prostrados, diante da que celebra nela o que ele ajudou a deslanchar.

Já vi algumas mulheres assim. Era capaz de pressentir a 115 m que elas estavam levitando de tanto amor que seus amados nelas desataram.

Há uma coisa grave na mulher que foi ao clímax de si mesma. Que não esteja distraído o parceiro ou parceira. Ela tem mesmo um perfume diverso das demais. É um cio diferente. É quando a mulher descerra em si o que tem de visceralmente fêmea, tranqüila que, mais que possuída, possui algo que atingiu raramente. As outras mulheres percebem isto e a invejam. Os machos farejam e se perturbam. É como se estivessem num patamar seguro a se contemplar. É quase parecido a quando a mulher vive a maternidade. Mas aqui é ainda diferente, porque na maternidade existe algo concreto se movimentando dentro dela. Contudo, nessa atmosfera que se segue a uma epifânica sessão de amor, é diverso, porque ela está acariciando uma imponderável felicidade.

Estou falando de uma coisa que os homens não experimentam assim. O gozo masculino é mais pontual e parece se exaurir pouco depois do próprio ato. Só os escolhidos, os de alma feminina, vez por outra, o sentem prolongar-se dentro de si. Mas em geral, é diferente.

Terminado o ato, uns até rolam para o lado e dormem como se tivessem tirado um fardo do ombro, outros acendem o cigarro, vestem suas ansiedades e voltam ao trabalho.

É constatável, no entanto, que o homem apaixonado também transmite força, alegria, energia. Ele oscila entre Alexandre o Grande e o artista que chegou ao sucesso!

Também brilha. Mas é diferente. E não é disto que estou falando, senão do gozo feminino que não se esgota no gozo e se derrama em gestos e atenções por horas e dias a fio.

Freud andou várias vezes errando sobre as mulheres e, por exemplo, colocou equivocadamente aquela questão de que a mulher teria inveja do homem por ser este um animal fálico, etc.

Convenhamos: inveja têm (e deveriam ter) os homens quando prestam atenção no fenômeno que ocorre com as mulheres, que ao serem amadas atingem o luminoso êxtase de si mesmas, como se tivessem rompido uma escala de medição trivial para lá da barreira dos gemidos e amorosos alaridos.

Quando a mulher foi amada e bem amada, ela ingressa nessa atmosfera sagrada, cuja descrição se aproxima daquilo que as santas estáticas descreveram.

Uma aura de mistérios as envolve. E isso, por não ser muito trivial, por não ser nada profano, talvez se assemelhe aos mistérios gozosos de que muitos místicos falaram.

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